Denúncia contra a multinacional Nestlé por seus alimentos infantis
Lactantes latino-americanos entre os prejudicados
No Brasil, segundo maior mercado do mundo, com vendas de cerca de US$ 150 milhões em 2022, três quartos dos cereais infantis da marca Cerelac (comercializada no país com o nome Mucilon) contêm açúcar adicionado, com uma média de 3 gramas por porção.
Quanto ao leite em pó Ninho, outro item de referência da multinacional suíça, com vendas de 1 bilhão de dólares em 2022, 21 de seus 29 produtos (72%) em países de baixa e média renda registraram açúcar adicionado. O valor máximo —5,3 gramas por porção— foi detectado em um produto comercializado no Panamá. Embora 4,3 gramas por porção também tenha sido encontrado no mesmo produto da Nestlé vendido na Nicarágua; no México, 1,8 gramas por porção, e na Costa Rica, 1,6 gramas por porção.
Lucro gigante
Atualmente, a Nestlé controla um quinto do mercado de alimentos para bebês, avaliado em cerca de US$ 70 bilhões. E as duas marcas de referência, Cerelac e Ninho, estão entre as marcas mais vendidas em vários países do Sul.
De acordo com a Euromonitor, empresa de análise de mercado especializada na indústria alimentícia, em 2022, as vendas totais nesse setor e em todo o mundo geraram mais de 2.5 bilhões de dólares para a multinacional.
Para a OMS, essa dupla fórmula é injustificável. Segundo Nigel Rollins, um dos especialistas da OMS, o fato da Nestlé não adicionar açúcar aos seus produtos vendidos na Suíça, mas estar muito disposta a fazê-lo em países onde os recursos são mais escassos, é “problemático do ponto de vista ético e de saúde pública”. E explica que a intenção dessas corporações é habituar as crianças a um certo nível de açúcar desde muito cedo para que depois prefiram produtos com alto teor de açúcar. Isso é “totalmente inapropriado”, diz Rollins.
Violação de pautas internacionais
De acordo com as novas Diretrizes Políticas para a proteção das crianças contra o impacto nocivo da comercialização de alimentos, que a OMS publicou em julho de 2023, as crianças continuam a ser expostas a um poderoso marketing alimentar que promove, predominantemente, alimentos ricos em ácidos graxos saturados e trans, bem como em açúcares livres e/ou sódio. Tudo isso contraria a boa saúde das crianças e violando vários dos direitos consagrados na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. (https://www.who.int/publications/i/item/9789240075412).
Alguns meses antes, em fevereiro de 2022, a mesma OMS, em conjunto com a Organização das Nações Unidas para a Infância (Unicef), publicou um relatório sobre a indústria de leite infantil. Conclui que essa indústria, que atualmente vale impressionantes US$ 55 bilhões, executa sistematicamente estratégias de marketing altamente antiéticas.
Apesar dos claros benefícios do leite materno, as taxas globais desse tipo de alimentação aumentaram muito pouco nas últimas duas décadas, enquanto as vendas de fórmulas industrializadas mais do que dobraram. Consequentemente, apenas 44% dos bebês com menos de seis meses de idade em todo o mundo são amamentados exclusivamente com leite materno. Em seu relatório conjunto, a OMS e a Unicef denunciam que, de forma alarmante, a indústria da nutrição infantil contribui para essa disparidade crescente por meio de táticas altamente questionáveis. Isso inclui presentes promocionais para profissionais de saúde, financiamento privilegiado para seus projetos de pesquisa e até comissões sobre vendas para influenciar as decisões das jovens mães sobre o alimento preferido para seus bebês. Mais de um terço das mulheres entrevistadas disse que um profissional de saúde recomendou uma marca específica de leite em pó.
É legal… Mas, é ético?
Como parte de sua investigação, a Public Eye e a IBFAN questionaram a Nestlé sobre essa política dupla de promoção e vendas nos países do Norte e do Sul. As respostas, que agora fazem parte do documento que as duas organizações divulgaram em abril, são formais, legalistas e não específicas. A Nestlé disse que reduziu a quantidade total de açúcares adicionados aos seus cereais infantis em todo o mundo na última década em 11%, e continuará a fazê-lo “sem comprometer a qualidade, a segurança e o sabor”. Além disso, continua o processo de remoção de sacarose e xarope de glicose de seus “leites de crescimento” Ninho. Por último, que os seus produtos estão “em total conformidade” com o Codex Alimentarius e com as leis nacionais (https://www.fao.org/fao-who-codexalimentarius/es/).Após o lançamento da pesquisa ‘Como a Nestlé converte as crianças em viciados em açúcar em países de baixa renda” (“How Nestlé Turns Children into Sugar Addicts in Lower-Income Countries”), que causou um enorme impacto na mídia, a Nestlé publicou na seção de perguntas de seu site, tentando diminuir o perfil desse debate, sua posição sobre o assunto. (https://www.nestle.com/ask-nestle/health-nutrition/answers/infant-formula-baby-food-cereals-added-sugar-low-income-developing-countries).
De acordo com a Nestlé, “aplicamos os mesmos princípios de nutrição, saúde e bem-estar em todos os lugares. Todos os nossos alimentos e leites para os primeiros anos de vida são nutricionalmente balanceados e de acordo com as diretrizes científicas e as recomendações dietéticas comumente aceitas”.
Em seis breves pontos de redação contraditória, a Nestlé nega que seus produtos para crianças menores de doze meses contenham açúcares e sustenta que continua reduzindo esse componente; que, em muitos países, adiciona ferro e outras vitaminas para combater a subnutrição infantil; que a sua política de informação é sempre transparente e que respeita as legislações nacionais. Essas declarações, no entanto, não respondem às denúncias objetivas e fundamentadas com fatos, números e percentuais incontestáveis da investigação promovida pela Public Eye e pela IBFAM.
Para Laurent Gaberell, pesquisador de Public Eye e um dos autores do estudo, as respostas da Nestlé são um pouco mais do mesmo e, como ele diz a este correspondente, “não entram no cerne das críticas que promovemos”. Temos a impressão, acrescenta Gabrell, de que para a Nestlé “nossa denúncia não é séria o suficiente e que [eles acreditam que] já estão fazendo um grande esforço para melhorar seus produtos”. Por outro lado, que “tudo o que fazem é legal e que respeitam as regras de cada país”. Sobre a ampla cobertura mediática e o debate que essa investigação tem provocado em alguns países do Sul, onde há setores da sociedade civil que estão dispostos a dar prioridade à questão da alimentação infantil, Gaberell reflete que “é um sinal muito bom em termos do impacto do nosso trabalho”.
Por sua vez, sua colega Geraldine Viret, responsável de comunicação da Public Eye, eleva o tom e enfatiza: “Da Índia ao Brasil, Bangladesh e Senegal, a Nestlé foi pega em sua hipocrisia sobre o ‘açúcar puro’, acompanhada por uma desagradável dose de neocolonialismo”. De acordo com Viret, “As gerações presentes e futuras, especialmente em países de baixa e média renda, arriscam sua saúde se a Nestlé continuar a violar os princípios educacionais (e éticos) mais básicos impunemente” (https://www.publiceye.ch/fr/regard/nestle-ou-les-recettes-dun-scandale-mondial).
Tradução: Rose Lima.