Ângela Carrato – Jornalista e professora da UFMG
Leonel Brizola costumava dizer que para uma pessoa ficar do lado certo da história, bastava se posicionar de forma contrária à TV Globo.
Quem, por dever de ofício, como é o meu caso, ou aquele que buscando se informar assiste ao Jornal Nacional, deve ter percebido o entusiasmo da emissora dos irmãos Marinho para com o projeto de lei 2630/20, conhecido como PL das Fake News.
Nos últimos dias, o JN veiculou longas entrevistas com o relator do projeto, deputado Orlando Silva (PC do B-SP), garantindo inédito espaço a uma figura de esquerda. Some-se a isso que um batalhão de comentaristas e editorialistas do jornal O Globo foi acionado para completar a defesa de que está passando da hora de combater as fake news através de legislação específica.
Para justificar tamanho empenho, os veículos da família Marinho lembram que os recentes atos criminosos contra escolas em Santa Catarina e no Espírito Santo, que redundaram em mortes de crianças, foram articulados ou contaram com redes sociais.
Que todos nós devemos ser contra a mentira, onde quer que ela seja divulgada, não resta dúvida. Mas o que justifica o entusiasmo da Globo para com esse projeto de lei, sendo que ela e o conglomerado de mídia da qual faz parte são inimigos históricos de qualquer proposta envolvendo regulação da mídia?
A questão se mostra mais estranha ainda quando se sabe que desde sempre o Grupo Globo é um dos maiores, senão o maior, manipulador e divulgador de mentiras no Brasil.
Será que alguém acredita que as fake news começaram nas redes sociais e circulam apenas nas plataformas das big techs?
Será que alguém acredita que a mídia tradicional divulga apenas fatos como eles realmente são?
Excluídas estas possibilidades, estaria a Globo fazendo o mea culpa, mesmo atrasado, em relação às mentiras que divulgou e que levaram ao golpe que derrubou a ex-presidente Dilma Rousseff em 2016, tratado como impeachment, mesmo não havendo crime de responsabilidade?
Estaria a Globo se redimindo das manipulações e mentiras que divulgou sobre a Operação Lava Jato, que condenou, sem provas, e prendeu por 580 dias o então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva?
Estaria a família Marinho se redimindo, se quisermos recuar no tempo, de todos os absurdos que divulgou contra presidentes como Getúlio Vargas e João Goulart, o último vítima do golpe que mergulhou o país numa ditadura que durou 21 anos?
O que realmente pretende o Grupo Globo com este apoio?
A melhor pista é dada pela leitura atenta deste projeto de lei, cuja versão final foi apresentada na última quinta-feira e seguirá direto para a votação em plenário na próxima semana. Como foi aprovado regime de urgência para a votação, o projeto não passará pelas comissões, onde poderia ser debatido e alterado.
Da versão final foi retirado um dos pontos mais criticados pela oposição e pelas big techs, a criação de uma entidade fiscalizadora. Inicialmente a ideia era o Poder Executivo criar esse órgão, que seria responsável por abrir um protocolo de segurança para atuar quando houvesse risco a direitos fundamentais ou se as plataformas descumprissem suas obrigações.
A razão da oposição de direita e de extrema-direita à criação de uma entidade fiscalizadora é conhecida. Seria o fim das fake news divulgadas pelo batalhão bolsonarista nas redes sociais, uma vez que a fiscalização estraria à cargo de um órgão independente e não por conta de regulação das próprias plataformas, cujos proprietários, a exemplo do dono do Twitter, Elon Musk, não veem nenhum problema na divulgação de discurso de ódio e de preconceitos por considerá-los “liberdade de expressão”.
Com esse ponto retirado, a situação permanecerá praticamente como está: as plataformas deverão fazer autorregularão. Em outras palavras, o atual projeto e suas dezenas de artigos terão pouca serventia.
A título de exemplo, durante reunião com o ministro da Justiça, Flávio Dino, a representante do Twitter no Brasil afirmou que não retiraria conteúdo neonazista da rede, só recuando diante da postura de Dino de que iria retirar a própria rede do ar, dispondo do que a legislação em vigor possibilita.
Já o Telegran está fora do ar no Brasil desse a última quinta-feira, por decisão de um juiz do Espirito Santo. A plataforma não entregou para a Polícia Federal os dados completos de pessoas que postaram discurso de ódio e podem estar por trás das mortes de crianças naquele estado e foi penalizada.
Na versão final do projeto das Fake News foi incluído, no entanto, um item que é do máximo interesse do Grupo Globo e de toda a chamada mídia tradicional.
Ela deverá ser remunerada pelos seus conteúdos exibidos pelas plataformas. Isso significa que nenhum veículo da mídia independente poderá citar qualquer notícia, foto ou vídeo que tenha sido divulgado pela mídia tradicional sem pagar por isso. Situação que coloca em risco a sobrevivência da mídia independente, logo ela que foi fundamental para denunciar o golpe de 2016, a prisão de Lula, esteve na linha de frente no combate ao desgoverno de Jair Bolsonaro e segue firme na defesa da democracia.
Apelidado de “jaboti da Globo” – como jaboti não sobe em árvore, alguém o colocou lá – esse item interessa à família Marinho por duas razões. A primeira é política. Limitaria o poder de crítica dos veículos independentes, obrigados a ter produção jornalística própria para todo e qualquer assunto que queiram comentar. A segunda é econômica e nela reside o interesse maior da família Marinho.
Na Austrália, onde legislação para combater fake news foi aprovada no ano passado com item semelhante, só o Google foi obrigado a repassar para a mídia tradicional US$ 200 milhões, a título de remuneração pela utilização de conteúdo. O dinheiro pago deixou de entrar no caixa da mídia independente, que tem nele praticamente o único meio para bancar seu funcionamento.
O projeto das Fake News atende aos interesses da família Marinho ao funcionar também como um reforço de caixa. Dinheiro mais do que oportuno, num momento em que o Grupo Globo faz demissão em massa a título de “reestruturação” e se prepara para mudar o próprio perfil dos seus negócios.
Como se sabe, a TV aberta, carro-chefe do grupo, está com os dias contados.
Desde que a versão final deste projeto foi divulgada, avolumam-se as críticas por parte dos veículos independentes. Críticas que o deputado Orlando Silva não tem respondido, preferindo falar apenas para a “mídia profissional”.
A postura de Orlando Silva causa estranheza, pois em 2007, quando ministro dos Esportes do governo Lula, ele próprio foi execrado publicamente pela TV Globo por ter comprado uma tapioca de R$ 8,30, usando o cartão corporativo. Execração que a mesma Globo jamais fez em se tratando dos gastos milionários de Jair Bolsonaro no cartão corporativo. Vale lembrar que a Globo trata as joias recebidas por Bolsonaro como presentes e não propina que elas são.
Orlando Silva e a Globo se acertaram?
A situação fica ainda mais esquisita quando se sabe que o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social (Secom), deputado Paulo Pimenta (PT-RS), também não tem falado sobre o assunto, evitando conversar com os veículos da mídia independente, coisa que sempre fez ao longo de sua vida pública.
Que o governo Lula está sob fogo cerrado, não há dúvida. Basta verificar que na próxima semana, além do projeto contendo o jaboti da Globo, duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) deverão iniciar seus trabalhos, uma sobre os atos golpistas de 8 de janeiro e outra sobre o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).
O objetivo da primeira CPI é tentar impor como verdadeira a narrativa dos golpistas de que Lula teria sido leniente diante dos atos que destruíram as sedes dos Três Poderes em Brasília.
Já a CPI do MST visa fustigar o governo e alimentar a narrativa golpista de que Lula apoia atos de vandalismo e invasões de propriedades, pois não foi apontado nenhum aspecto específico a ser investigado.
A CPI do MST é uma armação da mesma extrema-direita que desconvidou o ministro da Agricultura, Carlos Fávero, para a abertura de um dos mais importantes eventos nacionais do agronegócio, em Ribeirão Preto. O motivo foi a presença de Bolsonaro na abertura do evento.
Não há, na história recente brasileira nada semelhante a este tipo de grosseria, que não esconde sequer seu aspecto puramente ideológico.
No momento em que o governo tem pela frente a batalha pela aprovação do arcabouço fiscal, medida essencial para sepultar o famigerado teto de gastos e destravar o crescimento econômico, Lula terá que gastar muita energia com esse projeto das Fake News e as duas CPIs.
Vale destacar que na mesma semana em que a TV Globo exaltou o “jornalismo profissional” e criminalizou as plataformas, a CNN Brasil, divulgou sua segunda mentira em menos de 10 dias.
Depois da manipulada edição dos vídeos sobre a invasão do Palácio do Planalto, que acabou derrubando o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Gonçalves Dias, foi a vez da emissora do bolsonarista Rubens Menin divulgar que uma empresa ucraniana teria deixado de investir milhões no Brasil por causa das declarações do presidente Lula sobre a guerra naquele país.
A mentira contou com a participação do governo de São Paulo, ocupado pelo bolsonarista Tarcísio de Freitas, pois um dos seus secretários teria confirmado a desistência.
Foi preciso a empresa, que sequer foi procurada pela reportagem da CNN, desmentir o assunto. Mas o estrago estava feito. As redes bolsonaristas já dispõem de nova munição contra o governo.
Tarcísio Freitas não é o primeiro governador a divulgar fake news. Seu colega, de Minas Gerais, Romeu Zema, fez isso recentemente, ao comparar Tiradentes e os integrantes da Inconfidência Mineira a golpistas contra a coroa portuguesa.
Por esse tipo de coisa, ambos deveriam ser enquadrados pelo projeto que visa combater as fake news. Mas do projeto também foi retirada a punição a parlamentares e agentes públicos, que assim poderão continuar mentindo sem qualquer punição.
Tarcísio deve estar comemorando. Zema também e junto com eles uma penca de parlamentares que vive divulgando mentiras.
O jaboti da Globo, as CPIs e as fake news desses governadores não são fatos isolados. Integram a nova ofensiva dos golpistas, cujo objetivo é tentar inviabilizar o governo Lula.
Resta saber como reagirá o Planalto, pois se o pedido de desculpas que Tarcísio fez a Lula soa tão verdadeiro quanto uma nota de três reais, a disposição dos golpistas de, ao atingir a mídia independente, atingir o próprio governo, é real.
Leonel Brizola estava certo.
*Matéria publicada originalmente em Novo Jornal