- Author,Vitor Tavares
- Role,Da BBC News Brasil em São Paulo
Duas crianças parecem fazer um duelo de dança no meio da rua. De chinelo, movimentam as mãos, abrem escala e saltam no ar. De fundo, uma música — um funk brasileiro de ritmo acelerado.
Nas Filipinas, o vídeo surgiu em meados de abril. Circulou na internet e, dois dias depois, foi a vez dos brasileiros viralizarem a gravação — muitos acreditando se tratar de um vídeo nacional.
Alguns mais atentos, porém, já sabiam que se tratava, mais uma vez, de imagens de um país do outro lado do mundo.
“As Filipinas são um Estado brasileiro perdido na ásia SIM. Olhem esses queridos e me digam se eles não são do interior de Minas Gerais”, publicaram usuários numa corrente de mensagens.
Não é a primeira vez que comentários como esses aparecem em vídeos filipinos que “soam” como Brasil.
‘MiniBrasil?’
Pelo menos cinco aspectos são mencionados por pesquisadores e pessoas versadas nas duas nações: colonização, religião, clima, festas e o jeito das pessoas.
“Eu digo que é um ‘miniBrasil’ na Ásia”, diz Fabiana Magante, técnica de informática brasileira que mora em Manila, capital das Filipinas, há 11 anos.
“Eles têm o ‘jeitinho filipino’ também, em que tudo se dá um jeito. Mas também são da ‘zueira’, acolhedores e fazem muita piada com a situação da própria pobreza e problemas do país, assim como no Brasil.”
No censo de 2010, apenas 134 brasileiros eram registrados como residentes nas Filipinas. No Brasil, os filipinos aparecem como uma das nacionalidades com mais pedidos de trabalho, principalmente relacionados a serviços marítimos.
Quatro anos antes do vídeo viral das crianças dançarinas, o designer gráfico San, da cidade filipina de Taytay, já havia visto comparações entre os dois países. Uma página de memes fazia uma comparação entre funkeiros brasileiros e a cultura urbana das periferias nas Filipinas.
“Muitos vídeos são da comunidade LGBTQIA+, que tem a mesma energia da brasileira”, diz San, que adotou nas redes uma expressão que colegas virtuais brasileiros o ensinaram: “filiprimo”.
Nos Estados Unidos, onde há uma grande comunidade Filipina de mais de 4 milhões de pessoas, há uma identificação entre filipinos e latinos, principalmente na Califórnia.
À BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, o pesquisador Anthony Christian Ocampo, autor do livro The Latinos of Asia: How Filipino Americans Break the Rules of Race (“Os Latinos da Ásia: Como Filipinos-americanos Rompem com as Regras Raciais”, em tradução livre) chegou a explicar esse sentimento.
“Apesar de os filipinos pertencerem à categoria ‘asiáticos, seus marcadores culturais se encaixam mais com os latinos do que qualquer outro grupo asiático-americano.”
Origens na colonização
As Filipinas são um país que viveu mais de 300 anos de colonização espanhola — assim como boa parte da América Latina.
O primeiro contato foi em 1521, com a chegada do navegador Fernão de Magalhães, morto numa batalha com povos nativos. Em 1565, teve início de fato a ocupação europeia.
O nome do país, inclusive, não parece “Felipe” por acaso. É uma homenagem ao então príncipe e futuro rei Felipe 2º da Espanha. Há debates no país sobre a mudança desse nome.
“Os princípios da colonização lá eram muito semelhantes aos princípios que criaram a colonização na América”, diz o professor de história Carlos Rocha, do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG) e que pesquisou a colonização das Filipinas em seu doutorado.
Mesmo depois da chegada às Américas, os espanhóis (e também os portugueses) nunca deixaram de querer alcançar a Ásia na busca de especiarias do Oriente – e como “porta de entrada” para o grande mercado da China.
“Eles não encontraram muitas coisas para explorar ali naquela região, ao contrário da América. Mas viam as Filipinas como estratégicas para as ambições sobre a China”, diz Rocha.
Durante o período colonial espanhol, as Filipinas, inclusive, respondiam diretamente ao vice-rei da Nova Espanha (como era conhecida a região do México).
E, por mais de dois séculos, houve uma rota comercial que ligava diretamente Acapulco, na costa pacífica mexicana, a Manila.
Em 1898, durante a Guerra Hispano-Americana, a derrotada Espanha cedeu as Filipinas aos Estados Unidos. A independência filipina dos americanos só veio em 1946.
Papel da religião
Além de algumas semelhanças óbvias relacionadas à colonização, o pesquisador Carlos Rocha identifica paralelos entre a história filipina e a presença portuguesa no Brasil.
“Nos dois países, padres católicos tiveram papel fundamental no processo colonial num primeiro momento. Havia um discurso semelhante no sentido que os nativos não deveriam ser escravizados, mas sim convertidos ao cristianismo”, explica.
“Muitos dos freis que foram para as Filipinas tiveram um período de experiência e missão nas Américas. E levaram essa experiência para lá”.
Mesmo após o fim da colonização Espanhola, o catolicismo permaneceu forte na região.
No último censo, em 2020, mais de 78% da população filipina se declarou católica. É o único país asiático onde o cristianismo predomina. Nas vizinhas Indonésia e Malásia, por exemplo, a maioria é muçulmana.
“As Filipinas têm essa colonização e herança colonial única ali na região. Nesse aspecto, vejo semelhanças com o Brasil, que foi o único colonizado por Portugal nas Américas e com muita presença africana. Então, há uma valorização ali por eles serem os ‘exóticos’ e diferentes em relação aos países vizinhos, o que cria uma cultura muito própria”, destaca Rocha.
O designer filipino San acrescenta que a influência da religião aproxima os dois países ao fazer as pessoas “se adaptarem” no comportamento.
Ele lembra que muitos brasileiros o procuraram nas redes sociais após ele publicar sobre o fato de as Filipinas serem um país extremamente supersticioso.
Exemplos: se um garfo ou uma colher cair no chão, é sinal que alguma visita virá à sua casa; guarda-chuva atrás da porta pode atrair má sorte.
Para Fabiana Magante, que promove eventos brasileiros em Manila, essa contradição fica visível na representatividade LGBTQIA+ nas Filipinas.
“A cultura católica é muito presente na sociedade aqui. Mas, ao mesmo tempo, vejo que há uma tolerância com homossexuais, que são muito presentes nas ruas, nas festas”, diz.
Uma pesquisa de 2020 do centro de pesquisas Pew Research Center apontou que 73% dos filipinos acreditam que a homossexualidade deveria ser aceita pela sociedade – é um número muito maior que a vizinha Indonésia (9%) e superior ao do Brasil (67%).
Por outro lado, o país tem muita dificuldade de aprovar leis que protejam direitos da comunidade LGBTQIA+. Na há permissão de troca de gênero nos documentos ou casamento de pessoas do mesmo sexo a nível nacional.
Antes da chegada da fé católica (e dos espanhóis), quando os xamãs conhecidos como Babaylan eram os líderes religiosos, a sociedade local costumava aceitar com naturalidade a diversidade de gênero.
Sobrenomes
Entre os sobrenomes mais comuns nas Filipinas, estão Santos, Cruz, Bautista, García… Parece familiar?
Mas, ao contrário do que possa parecer, isso tem pouco a ver com uma ascendência espanhola dos filipinos e mais sobre domínio colonial.
No século 19, a Espanha instituiu no país o Catálogo Alfabético de Sobrenomes, em que havia uma lista de nomes ocidentais que seriam atribuídos a famílias filipinas. Muitas, convertidas ao catolicismo, adotaram ou receberam termos religiosos, como “Santos” e “Cruz”.
O professor Carlos Rocha explica que, ao contrário de muitos países latinos, não houve miscigenação na sociedade filipina – muito por causa da baixa presença, em número, de colonos europeus nas ilhas.
“Muitos espanhóis apenas passavam por lá e iam embora”, diz.
Idioma
Há mais de 100 idiomas falado nas Filipinas, mas a língua oficial do país é o filipino – que, por sua vez, vem da língua nativa tagalog.
Durante o período colonial, o espanhol era falado no país. Após a administração das ilhas passar para os EUA, o inglês passou a ser usado e, até hoje, é amplamente falado pela população.
Apesar disso, o tagalog, que é a língua mais falada nas casas segundo o censo do país, recebeu influências do malaio, chinês e, claro, espanhol. Algumas palavras, por consequência, se assemelham muito com o português.
“Lugar” é “lugar”, “Bíblia” é “Bibliya”, “dentista” é “dentista”, “banco” é “bangko”…
Sociedade
Rir dos próprios problemas e até da política também é visto como uma característica filipina.
“É tão parecido que, tirando o idioma, é muito tranquilo para um brasileiro se adaptar à vida e ao jeito filipino”, conta Fabiana Magante.
Alguns dados deixam essa semelhança evidente.
Segundo o relatório anual da Transparência Internacional sobre a percepção da corrupção no seu país, as Filipinas aparecem na 116ª pior colocação na lista de 180 países. O Brasil aparece em 94ª.
No Índice de Gini, que mede o grau de concentração de renda, os dois países aparecem na parte de baixo da tabela entre os mais desiguais.
Filha de pai filipino e mãe brasileira, a jornalista Debora Gatchalian, de Piracicaba (SP), diz que, mesmo com a “vida sofrida”, o modo de festejar e se divertir é uma semelhança importante que se reflete nos memes e nas redes.
“É um país de clima quente, com pessoas acolhedoras e divertidas que gostam muito de cantar, dançar e beber”, diz Gatchalian, que mantém um canal para falar da cultura filipina no Brasil.
As culinárias dos países não são tão próximas, mas algumas comidas que aparecem com frequência na mesa dos filipinos poderiam estar facilmente numa casa brasileira.
A tradicional calderita parece com um clássico guisado de carne com batatas, o abacate também pode ser comido doce, e manga e abacaxi são frutas populares.
E, apesar de os filipinos não serem adeptos do futebol, eles são fãs ferverosos de esportes com vôlei e até já veneraram atletas brasileiros.
Leila do Vôlei, atual senadora da República, por exemplo, teve uma legião de fãs no país, que até hoje usam a hashtag #LeilaMania na redes. Alguns cartazes nas quadras pediam até para a brasileira virar presidente das Filipinas.