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Como China quer exportar ‘trânsito silencioso’ para o mundo a partir do Brasil

jul 17, 2023 #China, #EUA, #GWM
Trânsito em uma manhã de abril em bairro nobre de Pequim, capital da China — Foto: MARIANA SANCHES / BBC

Por Mariana Sanches, BBC

O trânsito é intenso na avenida de seis pistas que corta um dos bairros mais nobres da capital chinesa, Pequim. É uma manhã de abril, horário do rush em um meio de semana comum de primavera, e carros e ônibus disputam espaço com uma profusão de motocicletas e bicicletas elétricas.

É uma cena típica de qualquer megalópole, salvo por um detalhe: tudo parece se passar em mute: não há os esperados sons de motores e escapamentos.

O ambiente é tão silencioso que, da calçada, se pode ouvir um motorista tossir de dentro do carro do lado oposto da avenida.

Embora seja provavelmente só um efeito não intencional, o bem-estar provocado pela óbvia falta de ruído no tráfego é o primeiro sinal percebido por quem visita Pequim de que o trânsito no país passou por uma revolução literalmente silenciosa na última década.

Uma revolução que a China vem tentando exportar para o Ocidente a partir de países como o Brasil.

Ao menos duas das mais bem-sucedidas empresas chinesas do ramo — a BYD e a Great Wall Motors — desembarcaram recentemente no país anunciando investimentos bilionários. O movimento tem potencial para ser o mais robusto plano de produção automobilística elétrica chinesa fora da China.

Para Pequim, é mais do que uma oportunidade de avançar sobre um mercado promissor e ainda não explorado. É também a chance de abrir dianteira na disputa com os Estados Unidos por parcerias tecnológicas com o Brasil para produção de itens essenciais como chips e pela exploração de reservas brasileiras de minerais críticos, como lítio e metais de terras raras.

O que os chineses fizeram com o trânsito?

 

Mais da metade da frota mundial de carros elétricos — que baterá os 77 milhões de unidades em 2025 — circula na China.

Em 2022, quando a venda global desse tipo de veículo atingiu o recorde de 10 milhões de unidades, a China foi responsável por 60% delas — e já bateu a meta estabelecida pelo próprio governo para 2025. Em comparação, os EUA responderam por apenas 8% das vendas em 2022, segundo os dados da Agência Internacional de Energia.

“Há 15 anos, quando a China se questionou sobre como poderia chegar a ter uma presença privilegiada na produção mundial de automóveis, percebeu que não tinha chances de competir nos veículos convencionais à combustão, porque já havia produção de ponta e escala da Europa, dos Estados Unidos, do Japão e da Coreia do Sul. Então, o governo chinês decidiu se diferenciar indo na eletrificação, investindo no desenvolvimento de baterias”, diz Cássio Pagliarini, consultor automotivo da Bright e ex-diretor de marketing da Hyundai.

“Hoje, eles têm dez anos de vantagem sobre as concorrentes de outros países tanto em tecnologia quanto em preço de produção de bateria.”

A ideia não era só aumentar a presença no setor automotivo — o governo chinês percebeu que o investimento poderia ajudar o país a reduzir os índices de poluição de suas cidades e engrossar sua política climática, além de limitar a dependência da importação de petróleo e ajudar a economia após a crise de 2008.

China começou a criar pesados incentivos fiscais aos eletrificados e híbridos e a firmar volumosos contratos estatais para transporte público verde, em um processo que segue em curso.

O termo “eletrificado” tem sido usado para se referir a carros com algum nível de eletrificação, e não necessariamente se refere apenas aos carros movidos 100% a energia elétrica.

Em junho deste ano, a China anunciou o plano mais ambicioso de impulsionamento do setor automobilístico verde: serão US$ 72,3 bilhões em pacote de incentivos fiscais ao longo de quatro anos.

De outro lado, Pequim aplicou tributos sobre os veículos a combustão. O emplacamento de um carro a gasolina no país custa algumas dezenas de milhares de dólares e pode levar anos para ser aprovado. Já os elétricos estão isentos de qualquer burocracia ou custo para circular.

O resultado foi uma profusão de fabricantes de veículos eletrificados chineses — algumas estimativas apontam para ao menos 300 delas no mercado.

“A BYD e a GWM, que são grandes, já estão chegando no Brasil, mas sabemos de ao menos outras duas ou três montadoras chinesas que estudam entrar no mercado em breve”, afirmou Pagliarini, que alegou motivos contratuais para não abrir os nomes das fabricantes que lhe fizeram consultas.

O que os chineses viram no Brasil?

 

Há pouco mais de uma semana, a BYD, que superou a americana Tesla, do bilionário sul-africano Elon Musk, como maior produtora de veículos elétricos do mundo, anunciou que fará um investimento inicial de R$ 3 bilhões em uma planta industrial em Camaçari, na Bahia, e que “não poupará recursos para assumir a liderança na venda de veículos no país.”

A planta, que pertencia à americana Ford e produzia os modelos Ka e EcoSport, mas cuja operação se encerrara em 2021, foi alvo de uma intensa negociação entre chineses e americanos ao longo dos últimos 9 meses.

Na prática, a fábrica se tornou um símbolo de uma disputa geopolítica maior entre EUA e China por influência em mercados globais relevantes. Concretizar o negócio se converteu também em uma prioridade para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que pressionou para que o negócio fosse fechado ainda durante a visita do presidente brasileiro ao país, em abril, o que não aconteceu.

“Em todas as reuniões que tivemos com o presidente Lula, ele disse que tem em mente uma reindustrialização do Brasil, mas quer que isso seja feito com fábricas de alta tecnologia, com inovação muito expressiva e geração expressiva de número de postos de trabalho. E que o presidente tem na China um aliado, seja como produtor, seja como consumidor, para reindustrializar o Brasil”, afirmou à BBC News Brasil o ex-ministro das Cidades Alexandre Baldy, conselheiro da BYD no Brasil desde o fim de 2022.

Tanto o governo federal quanto o da Bahia se lançaram a fazer intermediações entre Ford e BYD para desfazer impasses na venda. Mas as tratativas ainda se alongaram por quase três meses após a visita do líder brasileiro à China.

A transação, fechada por cerca de R$150 milhões, ainda não foi oficializada publicamente pelas partes. No entanto, é considerada tão certa que já motivou o envio de mais de 40 mil currículos de metalúrgicos e funcionários administrativos para a empresa chinesa (a expectativa é de geração de até 5 mil empregos diretos no auge da operação fabril).

As reformas na planta devem começar nas próximas semanas e a expectativa da BYD é que seus primeiros modelos com DNA brasileiro cheguem ao mercado até o final do ano que vem.

“Em cinco anos, esperamos estar entre as três maiores montadoras do Brasil, com uma entrega de 300 mil novas unidades por ano e com 70% de cada uma delas com conteúdo brasileiro”, diz Baldy.

Além do modelo 100% elétrico batizado de Dolphin, a empresa produzirá no Brasil o Song Plus, um híbrido que, na versão brasileira, deverá ter motor a combustão totalmente movido a etanol.

A BYD enfrentará no Brasil a concorrência de uma velha conhecida sua.

A Great Wall Motors (GWM) anunciou há poucos dias a expansão da capacidade produtiva de 20 mil para 100 mil unidades de veículos eletrificados por ano em sua planta, em Iracemápolis, no interior paulista.

A fábrica, que pertencia à Mercedes Benz até 2021, tem passado por adaptações para iniciar sua pré-produção industrial em 1o de maio de 2024.

Na próxima semana, a marca pretende lançar um novo modelo 100% elétrico no país, que se juntará ao SUV híbrido Haval H6 e à picape média Poer.

“Fora da China, até então, a GWM só tinha fábricas pequenas na Tailândia e na Rússia, para atender demandas mais locais. A operação da GWM no Brasil será a primeira no Ocidente, não temos nada na Europa ou nos EUA. É uma chegada em um novo mercado e uma chegada com um aporte de R$10 bilhões de investimentos da matriz chinesa aqui até 2031”, disse à BBC News Brasil Ricardo Bastos, diretor de relações institucionais e governamentais da GWM, mesmo posto que ocupou por quase 12 anos na Toyota.

O interesse das montadoras chinesas no Brasil alia motivos geopolíticos, econômicos e tecnológicos.

Em 2021, o Brasil já era o maior destino estrangeiro de investimentos chineses no mundo.

“No ano passado, a venda de carros no Brasil foi de 2 milhões de unidades, mas nós já tivemos quase 4 milhões sendo vendidas por ano, em 2012. Onde há um mercado desse tamanho não atendido por montadoras chinesas no mundo?”, diz Pagliarini.

Segundo Baldy, a BYD está convencida de que o Brasil deve acelerar o processo de substituição da frota nacional à combustão por veículos elétricos, o que abriria um mercado ainda maior para a empresa no país.

“Mas o Brasil também serviria como um hub de exportação para toda a América Latina, com as facilidades do Mercosul e, possivelmente, até mesmo pra Europa, ainda mais se for concluído o acordo Mercosul-União Europeia”, diz Pagliarini.

Bastos, no entanto, vai além. “Brasil e China têm uma parceria estratégica e a relação hoje evoluiu para além de intercâmbio comercial de produtos, para uma transferência de tecnologia”.

A GWM e a BYD trabalham com a perspectiva de produção de diversas partes do veículo, inclusive de baterias, com fornecedores brasileiros. Nos planos das montadoras estaria até mesmo a possibilidade de apoiar a exploração de lítio no país, mineral também alvo de interesse das maiores potências mundiais.

Caro pra comprar, barato pra circular

 

Ao menos inicialmente, porém, as montadoras chinesas não entram no mercado com condições para atender a todos os bolsos. O modelo mais barato da BYD, por exemplo, custa quase R$ 150 mil.

A explicação para o preço alto é dupla. Primeiro, ao entrar em um mercado novo, as empresas optam por produtos que lhes garantam maior margem de lucro, caso dos modelos mais sofisticados, e que permitam adequar aos poucos a escala de produção, para evitar eventuais perdas e prejuízos no processo.

Segundo porque os carros elétricos não conseguem, por enquanto, competir em preço com os populares à combustão.

Pagliarini dá um exemplo para ilustrar a situação: “No Brasil, o Renault Kwid elétrico custa R$146mil, enquanto o mesmo carro à combustão sai por R$ 69 mil. É certo que o preço dos eletrificados vai baixar, mas não acredito que eles alcançarão os valores dos populares a gasolina atuais”.

Na China, a BYD é capaz de produzir o seu veículo mais barato a um custo que equivale a R$ 55 mil — mas não prevê por enquanto que o modelo chegue ao Brasil, tampouco nesta faixa de preço.

Para o consumidor que opta por um elétrico, a vantagem financeira está na hora de circular: o custo do quilômetro rodado de um elétrico é, em média, 20% do valor por km à gasolina, no Brasil.

Faz especialmente sentido para quem roda muito com o carro, como motoristas de aplicativo. Na semana passada, a empresa e aplicativo de transporte individual 99 anunciou que pretende facilitar a compra de 300 veículos da BYD para seus motoristas.

Segundo Pagliarini, a presença dos elétricos e híbridos no Brasil vai crescer nos próximos anos, mas é esperado que as montadoras tradicionalmente instaladas no país reajam com agilidade a uma eventual competição com os chineses.

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