Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas destacam que a união entre as duas iniciativas é um “casamento perfeito” que pode destravar gargalos de infraestruturas, especialmente na construção de ferrovias.
No final de janeiro, o governo chinês manifestou a intenção de unir as obras do Novo Programa de Aceleração do Crescimento (Novo PAC), relançado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no ano passado, com um orçamento de R$ 1,7 trilhão, à Iniciativa Cinturão e Rota, conhecida como Nova Rota da Seda.
A proposta foi feita pelo ministro chinês das Relações Exteriores, Wang Yi,
durante sua visita a Brasília, em janeiro, para reuniões com Lula, com o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, e com o assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais, Celso Amorim.
Na ocasião, o ministro chinês sinalizou o interesse de Pequim em uma maior cooperação com o Brasil nos setores de produção de soja, economia verde, economia digital e inteligência artificial e na exploração espacial.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, analistas explicam que oportunidades essa junção tem potencial de trazer para o Brasil, bem como os riscos a serem analisados.
Como as obras do Novo PAC podem se encaixar no programa da Nova Rota da Seda?
Para Pablo Ibanez, professor de geopolítica da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisador visitante na Universidade Fudan, em Xangai, ambos os projetos são extremamente ambiciosos, o que torna a junção um casamento perfeito.
“O Programa de Aceleração do Crescimento novo, o PAC, é um programa muito amplo, e a Nova Rota da Seda também […], então eu acredito que a possibilidade de casamento entre esses projetos é uma possibilidade real, uma possibilidade, por exemplo, que vai desde o setor de infraestrutura, passando por setores ligados à conectividade 5G, à inteligência artificial, à própria questão dos elementos ligados à sustentabilidade, energias. Enfim, eles têm uma capacidade, uma possibilidade de casamento muito grande”, diz Ibanez.
Ele acrescenta que
a China já vem investindo no Brasil “na construção de portos, ferrovias, em grandes projetos de infraestrutura de energia em todos os setores energéticos, de gás, petróleo e energia nuclear”, porém ainda falta saber como a junção entre as duas iniciativas será feita, uma vez que não houve assinatura de nenhum termo.
“É bom lembrar que no começo do governo Lula, no ano passado, a primeira visita dele a Pequim foi uma visita suntuosa, ela foi uma visita em que ele foi recebido com muitas pompas e foram fechados basicamente 50 acordos, com inúmeros memorandos de entendimento. E nessa ocasião o Brasil não assinou a entrada dele na Nova Rota da Seda, que é uma iniciativa que já tem aí mais de dez anos, já passou por vários governos.”
Ibanez destaca que a quantia de R$ 1,7 trilhão do orçamento do PAC “é uma soma de dinheiro significativa”, sobretudo no caso do Brasil, e abre margem para inúmeras possibilidades, ainda que seja inferior aos US$ 2 trilhões que a China já investiu ao longo dos 10 anos da iniciativa da Nova Rota da Seda.
“Por isso que eu chamo muito a Nova Rota da Seda e eu insisto muito na ideia de que ela é um elemento geopolítico muito forte, que tem a capacidade de construção em diferentes territórios.”
Por que a Argentina está na Nova Roda da Seda e o Brasil não?
Questionado sobre por que a Argentina está na Nova Rota da Seda ao passo que o Brasil não, Ibanez afirma que o Brasil teve dois governos que promoveram o afastamento com Pequim.
“Um governo foi o de [Michel] Temer, que foi curto, mas também teve um rápido […] afastamento em relação à China, e isso dá para a gente observar pela própria postura como lidou com o Novo Banco dos BRICS, que é um mecanismo extremamente importante. A gente mal teve notícias sobre ele.”
Ele acrescenta que esse afastamento se agravou no governo seguinte, de Jair Bolsonaro, que passou “a fazer ataques diretos à China durante a pandemia”.
Ibanez afirma que a Nova Rota da Seda ganha força entre 2017 e a pandemia iniciada em 2019, quando as relações entre Brasil e China esfriaram, embora a relação comercial tenha sido mantida.
Adesão à Nova Rota da Seda pode impactar na neutralidade do Brasil?
Países que integram a Nova Rota da Seda assinam um termo de não reconhecimento de Taiwan. Questionado se isso seria um entrave para o Brasil, uma vez que o país perderia a tradicional neutralidade que marca a diplomacia brasileira, Ibanez afirma que a questão é mais pragmática, e que a adesão do Brasil não resultaria em um alinhamento.
“São 147 países. Então eu entendo que a ideia de a gente entrar na Nova Rota da Seda não é uma ideia que necessariamente alinharia a gente […]. Eu não acredito que essa adesão seja uma adesão ideológica, que ela vai, necessariamente, obrigar o Brasil a estar do lado de alguém.”
União do PAC com a Nova Rota da Seda pode destravar gargalos de infraestrutura
Para Evandro Menezes,
integrar o Brasil à Nova Rota da Seda é de grande interesse da China,
uma vez que a iniciativa tem como espinha dorsal o financiamento na área de infraestrutura, que no caso do Brasil mira sobretudo a área de portos, estradas e ferrovias de forma a se conectar com fluxos de comércio de mercadorias, com base em importação e exportação para a China.
“E o Brasil, nesse quesito, ainda está tateando, não há uma política muito clara nessa parte de incremento da ferrovia brasileira. Não só para a circulação de mercadorias, mas para a mobilidade de pessoas. E também no contexto mesmo urbano”, explica Menezes.
Ele destaca que Pequim tem um interesse muito grande em investir em ferrovias, e lembra que a China tem cerca de 150 mil quilômetros de ferrovias, além de cerca de 45 mil quilômetros de trens-bala.
“Isso foi muito importante para a estratégia chinesa de crescimento, porque integrou o país através das ferrovias, desconcentrou a população também, deu a possibilidade de a população poder morar em outras cidades longe dos centros urbanos na China.”
Menezes destaca que um dos pontos positivos da Nova Rota da Seda é que a iniciativa “não é um acordo fechado” e que cada país pode negociar o termo de sua participação. Ele ressalta, no entanto, que o Brasil tem uma política de integração regional mais pautada no contexto sul-americano, e precisa colocar a China nessa equação.
“Por isso que eu sempre falo o seguinte, o Brasil precisa pensar a integração regional e a sua política externa na América do Sul, colocando a China na equação, que, ora, pode ser um conjunto formidável, ora, pode ser um grande aliado […] pode haver interesses de certas infraestruturas na América do Sul, com aportes de investimento chinês que também possam interessar o Brasil, e ainda que não necessariamente sejam infraestruturas que estejam localizadas no território brasileiro.”
Questionado se seria interessante para o Brasil o interesse da China na cooperação na produção de soja, na economia verde, digital, inteligência artificial e até na exploração espacial com o Brasil, Menezes afirma que o Brasil deve estar aberto “para qualquer parceria que traga benefícios para o nosso país e o nosso povo”.
“E a China é um dos poucos países do mundo que tem não só recursos para fazer investimento, mas tem uma presença hoje importante no Brasil, o nosso maior parceiro comercial. A gente está junto no BRICS, está junto no NDB [Novo Banco de Desenvolvimento, também chamado de Banco do BRICS]. Então, há muitas razões para estreitarmos esta relação, aprofundarmos a cooperação nas áreas que já estão bem desenvolvidas e ampliarmos a cooperação naquelas áreas que não estão ainda bem desenvolvidas ou que ainda não houve qualquer tipo de cooperação.”
Qual o risco de endividamento do Brasil, caso passe a integrar a Nova Rota da Seda?
Sobre a possibilidade de o Brasil contrair dívidas com a China, difíceis de pagar, ao abrir oportunidade para construção de ferrovias e hidrovias, Menezes afirma que os riscos existentes são como em qualquer negócio.
“Já li alguns artigos de vários analistas econômicos mostrando que as coisas não são tão trágicas como se fala, por exemplo, dessa relação da China com alguns países específicos do continente africano que teria esse tipo de dívida. Quando digo trágico, digo assim, comparado com as dívidas que esses países têm com organismos internacionais ou outros países do Ocidente. Então, o que eu quero dizer com isso é que isso depende muito da estrutura jurídica e institucional de cada país com o qual a China se relaciona”, explica Menezes.
Porém, ele afirma que o caso do Brasil é diferente, pois hoje o país tem uma estrutura institucional regulatória muito bem consolidada, além de uma capacidade de mão de obra bem desenvolvida.
“A negociação com China ou qualquer outro país, com o Brasil, ela tem condições de ser uma negociação em que o Brasil evite entrar em armadilhas que possam comprometer o seu desenvolvimento no futuro. Então, acho que, nesse quesito, os riscos existem, toda negociação precisa sempre ter uma lupa atenta. A gente vê, por exemplo, dificuldades para firmar o acordo Mercosul-União Europeia. Então, pode haver dificuldades e aspectos que não interessam ao lado brasileiro. O fato é que o Brasil tem condições de fazer essa avaliação antes de se comprometer em ingressar numa negociação que não vale a pena”, conclui Menezes.