O “jabuti” vai permitir que produtores e empresários de eventos façam shows e ganhem triplamente: com ingressos, patrocínio e verba pública
Enquanto dois outdoors instalados no quintal de uma casa, no Lago Norte, marcam os 3.799 dias do fechamento do Teatro Nacional Cláudio Santoro – tombado como patrimônio histórico e artístico do país – por falta de recurso, na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) uma emenda substitutiva a um projeto de lei (PL) do Poder Executivo autoriza o governo a investir dinheiro público em eventos privados que cobrarão ingressos.
Em outras palavras, no PL, o “jabuti” – termo utilizado quando são incluídas propostas que nada têm a ver com o projeto original – vai permitir que produtores e empresários do ramo de eventos façam shows e ganhem triplamente com ingressos, patrocínio de empresas privadas e dinheiro do governo.
Para Ruth Venceremos, produtora cultural e uma das diretoras do coletivo Distrito Drag, a emenda é um “total desrespeito com o povo do DF”. “Acredito na democratização da cultura, e isso se faz com mais recursos para fomentar a produção, a circulação e a difusão das manifestações artísticas, assegurando o acesso da população aos bens culturais”, declarou.
“Se o GDF passa a fazer patrocínio direto para grandes eventos que, além de receber o recurso público, cobram para que a população tenha acesso, o princípio da democratização da cultura é quebrado. Na cultura, precisamos de mais recursos para o FAC [Fundo de Apoio à Cultura] e a ampliação da LIC [Lei de Incentivo à Cultura]”, pontuou a produtora.
Assim como no caso de Ruth, o descontentamento com o projeto apresentado pelo líder do governo, deputado distrital Robério Negreiros (PSD), tornou-se consenso entre outros representantes do setor cultural da capital da República.
“Por qual motivo os empresários não patrocinam as reformas dos aparelhos culturais? Por que o GDF não investe em reformas e criação de aparelhos culturais no Plano Piloto e nas RAs? Uma política cultural mais sustentável seria boa para a população. Se tem dinheiro para investir em eventos privados, então deveria ter recursos para investir na preservação dos espaços e na manutenção dos bens culturais da cidade”, frisou a cineasta Cibele Amaral.
Segundo a artista, apesar de o setor de eventos contar com a Lei de Incentivo à Cultura (LIC), o dispositivo “não chega a nenhum setor”. “O audiovisual, que acompanho mais, não vê recursos da LIC, e um motivo é porque as empresas querem investir em eventos. Já estamos insatisfeitos com essa distorção”, pontuou.
“Espero que a Câmara Legislativa olhe para os fazedores de cultura e para a população e impeça que mais uma distorção aconteça para beneficiar apenas pequenos grupos, pois a população não terá condições de pagar os ingressos caros praticados pelo mercado. Se tiver patrocínio do GDF, que o evento seja gratuito. Pelo menos isso”, finalizou Cibele.
Quanto menos “’jabutis’, melhor”
À reportagem o ex-secretário da Cultura do DF Guilherme Reis disse acreditar “que a iniciativa de Robério Negreiros surgiu a partir de uma demanda de produtores de eventos”. Mas, segundo ele, essas mesmas demandas poderiam ser “mais bem atendidas” se houvesse “diálogo”. “O Distrito Federal conta com uma legislação exemplar nessa área, discutida em profundidade com a comunidade e construída junto com a CLDF. Eu acredito que essa demanda poderia ser resolvida com instrumentos já previstos na Lei Orgânica da Cultura”, assinalou.
“Uma corajosa ampliação dos limites de renúncia fiscal por meio da LIC, acompanhada de uma política de estímulo à melhor utilização dos benefícios previstos na LIC e na Lei Federal de Incentivo à Cultura, em que a participação de empresas privadas e estatais do DF – que é e sempre foi nula – poderia suprir. Isso sem falar do FAC, um dos maiores fundos de apoio à cultura do país”, disse.
“Acho que o diálogo com o setor cultural deve ser feito sempre de forma aberta, transparente e democrática. Assim, as diversas demandas do setor cultural poderiam ser mais bem atendidas. Quanto menos ‘jabutis’, melhor”, opinou.
Ao Metrópoles o distrital Fábio Felix (PSol) explicou que o capítulo conhecido como jabuti foi apresentado na “última hora da tramitação” do projeto. “A nossa questão com a matéria não é nem que não possa ter investimento público em um evento privado, desde que obviamente tenha estudo de impacto, né? Que aquilo tenha um ponto positivo, que a gente incentive a cultura. A questão para nós é que a matéria é alheia ao projeto”, afirmou.
“O projeto falava de questões procedimentais, de licença, de alvará, e, na última hora da tramitação, o governo apresentou um capítulo prevendo esse tipo de investimento privado. Então isso gerou uma preocupação na gente. A matéria, inclusive, já tinha acordo para votar antes. Então, essa emenda, eu acho que ela prejudica o que era o escopo do projeto. É uma emenda estranha à matéria”, declarou.
“Emenda Madonna”
O “jabuti” também tem sido chamado informalmente na CLDF de “emenda Madonna”, por citar na justificativa o show que a cantora fez no Rio de Janeiro, em 4 de maio, e movimentou R$ 300 milhões na economia local.
A prefeitura e o estado do Rio de Janeiro repassaram, cada um, R$ 10 milhões para o show de Madonna. Mas a diferença entre a apresentação internacional no Rio de Janeiro e a emenda substitutiva apresentada no DF é que o show de Madonna foi gratuito para o público, enquanto o projeto do deputado distrital autoriza o repasse de recursos públicos para eventos em Brasília que tenham bilheteria.
O projeto de lei apresentado pelo GDF tratava das regras para expedição de licenças para eventos na capital federal. A proposta chegou à CLDF em novembro de 2023 e já foi aprovada nas comissões. Seis meses após o governo enviar o PL, porém, Robério apresentou a emenda substitutiva com a inclusão de um capítulo dedicado exclusivamente ao patrocínio público para shows e outros eventos privados.
“Fica o Executivo autorizado a atuar como patrocinador em eventos de interesse público do Distrito Federal, realizados por terceiros, ou como beneficiário, quando houver interesse de particulares em alocar recursos”, diz trecho do “jabuti”. Segundo a “emenda Madonna”, os eventos serão selecionados por meio de chamamento público.
O outro lado
Em nota, o deputado Robério Negreiros disse que a proposta de patrocínio de eventos privados com dinheiro público é “uma iniciativa conjunta com representantes da área de eventos, e foi elaborado um projeto de lei com o objetivo de aprimorar o entendimento sobre os procedimentos de licenciamento de eventos no Distrito Federal”.
“A proposta, que visa incentivar a realização de eventos na capital e democratizar o acesso à cultura, foi elaborada por meio de um processo colaborativo que reuniu diferentes visões e experiências”, enfatizou.
Segundo o parlamentar, os critérios para liberação e valores do patrocínio serão definidos em regulamento próprio.
Veja as respostas do deputado distrital na íntegra:
“Em uma iniciativa conjunta com representantes da área de eventos, foi elaborado um projeto de lei com o objetivo de aprimorar o entendimento sobre os procedimentos de licenciamento de eventos no Distrito Federal. A proposta, que visa incentivar a realização de eventos na capital e democratizar o acesso à cultura, foi elaborada através de um processo colaborativo que reuniu diferentes visões e experiências.
O substitutivo apresentado consolida todas as emendas apresentadas por parlamentares da base e da oposição, aprimorando ainda mais o projeto original. Entre as principais novidades, destaca-se a criação de um calendário oficial de eventos, que permitirá um melhor planejamento e organização por parte dos organizadores e do público em geral. Além disso, o projeto institui o instituto do patrocínio, com o objetivo de incentivar a realização de eventos culturais, esportivos e artísticos na capital do país.
A criação desse instrumento se justifica pela necessidade de ampliar os investimentos na realização de eventos no Distrito Federal.
A realização de grandes eventos é fundamental para o desenvolvimento econômico do Distrito Federal, em 2023 a realização de grandes eventos injetou mais de R$ 7 bilhões de reais na economia do município de São Paulo, segundo dados da SPTuris somando apenas os valores dos maiores eventos, como Carnaval, GP de Fórmula 1, The Town e shows, como os de Taylor Swift. (Fonte: https://www.capital.sp.gov.br/w/noticia/grandes-eventos-ja-injetaram-r-7-641-bilhoes-na-economia-e-ajudaram-na-criacao-e-manutencao-de-milhares-de-empregos-este-ano)
Segundo dados da prefeitura de Fortaleza, em 2022, o turismo de eventos trouxe um impacto da ordem de R$ 347 milhões para a economia da cidade. (Fonte: https://www.fortaleza.ce.gov.br/noticias/turismo-de-eventos-em-2022-traz-impacto-de-r-347-milhoes-para-a-economia-de-fortaleza)
Recentemente, o município do Rio de Janeiro promoveu o show da Madonna, a prefeitura realizou um patrocínio de cerca de R$ 10 milhões, e obteve um retorno de cerca de R$ 293 milhões na economia carioca. (Fontes: https://prefeitura.rio/desenvolvimento-urbano-e-economico/show-de-madonna-vai-movimentar-r-2934-milhoes-na-economia-e-dar-aos-cariocas-um-retorno-30-vezes-maior-do-que-o-valor-investido-pela-prefeitura-em-patrocinio/)
O Distrito Federal tem se tornado palco de grandes eventos nos últimos anos, atraindo visitantes de todo o país e do exterior. Essa efervescência cultural e esportiva traz consigo diversos benefícios para a cidade e seus habitantes.
Shows internacionais de artistas renomados como The Killers, Red Hot Chili Peppers e Paul McCartney movimentam a economia local, gerando emprego e renda para diversos setores, como hotéis, restaurantes, transporte e comércio. Além disso, esses eventos colocam Brasília no mapa internacional, promovendo a cidade como destino turístico e cultural.
Eventos esportivos de grande porte, como a SuperCopa do Brasil 2023 e a Liga das Nações de Vôlei, também contribuem para o desenvolvimento da capital. Além de gerar os mesmos benefícios econômicos dos shows, esses eventos incentivam a prática de esportes e a formação de novos atletas, além de promoverem o turismo esportivo.
Em 2024, o renomado cantor Bruno Mars virá ao Brasil, onde realizará uma série de shows, e já estão confirmadas duas datas em Brasília, com ingressos esgotados. O impacto do evento vai além da economia local, movimentando diversos setores como hotéis, restaurantes e transporte. A presença de um artista internacional de renome como Bruno Mars também contribui para a promoção da imagem de Brasília como destino cultural e turístico. (Fonte:https://www.metropoles.com/distrito-federal/bruno-mars-em-brasilia-fas-fazem-nova-fila-quilometrica-por-ingressos)
Segundo estudos do SERASA, os dois shows do cantor Bruno Mars, vão gerar uma arrecadação de cerca de R$ 4 mi (quatro milhões de reais) de ISS somente com a venda dos ingressos, bem como, existe uma previsão que esses dois eventos vão injetar na economia local quase R$ 70 mi (setenta milhões de reais).
A repercussão econômica da realização da realização de grandes eventos tem a ver com a movimentação de dinheiro gerada na cidade com o aumento do turismo, maiores vendas no comércio, arrecadação de impostos, entre outros. Essa repercussão pode ser vista de forma direta com a compra de bens e contratação de serviços locais gerados pelo evento, de forma indireta oriundos do turismo, da compra de bens e da contratação de serviços por participantes e organizadores e a repercussão induzida que se caracteriza principalmente pela infraestrutura realizada para dar suporte a realização de eventos.
A medida visa facilitar o acesso da população a eventos de qualidade, promovendo a diversidade cultural e o desenvolvimento econômico e social, bem como, colocar o Brasília na rota dos eventos, tornando-a também a capital cultural do país.
Desta forma, a emenda apresentada guarda pertinência temática com o projeto inicialmente apresentado.
O projeto já foi analisado pelas comissões, e se encontra na ordem do dia pronto para votação no plenário, caso seja o entendimento dos nobres pares, acredito que a emenda poderá ser analisada pelas comissões em plenário e aprovada por unanimidade, tendo em vista a sua importância para o desenvolvimento cultural e econômico do Distrito Federal.
Os critérios de liberação e valores serão definidos em regulamento próprio do poder executivo, após a realização de estudos técnicos e jurídicos, e observaram os princípios que reagem a administração pública, o disposto na lei de licitação e contratos e as diretrizes orçamentárias.
Vale destacar que a proposta visa estimular a economia local, a promoção da cultura e do turismo, o fortalecimento da imagem do Distrito Federal e a geração de empregos”.