Mike Pompeo, que foi secretário de estado na gestão de Trump, revelou a estratégia em livro recém-lançado
O programa Mais Médicos, relançado hoje, foi alvo de uma disputa ideológica que acabou sendo decisiva para a sua inviabilização em novembro de 2018, quando Jair Bolsonaro nem tinha tomado posse.
Bolsonaro já atacava os profissionais antes mesmo de se eleger. ”Vamos botar um ponto final do Foro de São Paulo. Vamos expulsar com o Revalida os cubanos do Brasil”, disse, em novembro de 2018. “Nós não podemos botar gente de Cuba aqui sem o mínimo de comprovação de que eles realmente saibam o exercício da profissão. Você não pode, só porque o pobre que é atendido por eles, botar pessoas que talvez não tenham qualificação para tal.”
O Mais Médicos era aprovado pela maioria esmagadora dos brasileiros atendidos. Segundo pesquisa do Ipespe, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais, 85% das pessoas atendidas consideravam que a assistência médica melhorou com o programa. E dos 18 mil médicos que faziam parte do Mais Médicos, pelo menos 11 mil eram de Cuba.
A pesquisa teve uma amostra bastante ampla: 14 mil pessoas, de todas as regiões do país.
O governo cubano, por sua vez, afirmou, em nota: “Diante dessa lamentável realidade, o Ministério de Saúde Pública de Cuba tomou a decisão de não continuar participando do programa, o que foi comunicado à diretoria da Organização Panamericana de Saúde e aos líderes brasileiros que fundaram e defenderam essa iniciativa.”
O que não se disse à época é que a hostilidade de Jair Bolsonaro atendia a um plano dos Estados Unidos para acabar com o Mais Médicos no Brasil. Mike Pompeo, que foi diretor da CIA e secretário de Estado no governo de Donald Trump, revelou os bastidores dessa disputa, em seu livro Never Give an Inch –
Fighting for the America I Love (obra sem tradução para o português).
Ele diz que articulou o fim do Mais Médicos no Brasil e de um programa similar no Equador.
“Também reprimimos uma das jogadas favoritas de Cuba por influência e dinheiro – um programa de exportação de médicos cubanos para países da região”, escreveu.
Ele também dá vazão às elucubrações ecoadas por Bolsonaro durante a campanha de 2018 e já depois de eleito. “Longe de executar algum tipo de programa de missão médica de boa vontade, Havana força os médicos cubanos a trabalhar no exterior e depois confisca até 90% de seus miseráveis salários. Decidimos tentar esmagar esse esquema e conseguimos que Brasil e Equador expulsassem milhares de médicos entre eles”, acrescenta.
“Também convocamos a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) por facilitar essa forma de trabalho forçado por meio do programa Mais Médicos do Brasil, por meio do qual cerca de dez mil médicos supostamente foram traficados. Não uso o termo tráfico de pessoas impropriamente – isso é trabalho forçado. Esses médicos enfrentam condições de trabalho abomináveis. Para evitar deserções, eles devem ir para a missão sem suas famílias. Essas ações galvanizaram o ímpeto para mais responsabilidade pelo papel da Opas nessa confusão e, em março de 2022, um Tribunal de Apelações dos EUA decidiu que os médicos que haviam participado do programa Mais Médicos tinham legitimidade para processar a Opas”, afirmou ainda.
No livro, Pompeo questionou também a qualidade da medicina cubana.
“Os progressistas costumam elogiar o esquema dos médicos corruptos como uma forma de humanitarismo. A ingenuidade deles também se aplica à outra grande campanha de propaganda do regime: manipular liberais em todos os lugares para repetir a linha de que Cuba tem um dos melhores sistemas de saúde do mundo. A verdade é muito mais feia. A tão anunciada baixa taxa de mortalidade infantil de Cuba é manipulada. O regime muitas vezes força as mulheres a interromper gestações de baixa viabilidade, e o que pode ser uma morte neonatal é reclassificada como fetal. As farmácias geralmente carecem dos produtos mais básicos. Um médico americano disse sobre seus colegas cubanos: ‘Os médicos (cubanos) são muito bem treinados, mas não têm nada com que trabalhar. É como operar com facas e colheres. Os estrangeiros podem se maravilhar com as exibições de remédios de Potemkin (referência a uma personalidade russa no tempo dos czares) para eles quando visitam Cuba, mas essas cenas encenadas escondem a verdade de uma população sofredora, muitas vezes sem acesso a serviços básicos e remédios. A barbárie do regime me deixa orgulhoso de nosso histórico de restaurar a clareza moral à política dos Estados Unidos para Cuba e de fazer o que estava razoavelmente ao nosso alcance para punir o regime”, finaliza, no capítulo destinado ao Mais Médicos.
O discurso de Mike Pompeo não resiste ao fato de que, após a tentativa de reaproximação com Cuba feita pelo governo de Obama, a Universidade de Michigan decidiu enviar estudantes de Medicina para fazer um semestre na ilha cubana.
A universidade explicou que o objetivo era proporcionar aos alunos de medicina aprenderem com “um sistema de saúde que tem sido líder na identificação dos fatores sociais sobre as doenças e na prevenção quando se trata de saúde pública”.
É evidente que, na gestão do extremista de direita Donald Trump, o plano dos Estados Unidos tinha razões puramente ideológicas, sem nenhuma relação com a reconhecida excelência da medicina cubana. Coerente com a atitude de bater continência para a bandeira dos Estados Unidos, Bolsonaro foi apenas um marionete nas mãos de Pompeo.
Um ponto desse discurso, no entanto, pode explicar por que o Ministério da Saúde não explicitou na cerimônia de relançamento do Mais Médicos hoje se o convênio com a Opas será retomado. Sem ele, médicos cubanos não serão liberados para trabalhar no Brasil.
E a razão é que a liberação de médicos para trabalharem no Brasil está relacionada à exportação de serviços que ajuda Cuba a manter suas contas equilibradas. A lógica do regime cubano é que, se investiram na formação dos médicos, é natural que eles deem essa contraprestação.
Sobre o conceito exposto por Pompeo de que os médicos seriam submetidos a trabalho forçado, basta lembrar que a quase totalidade dos médicos cubanos retornaram a seu país, quando Bolsonaro inviabilizou a continuidade do programa.
Pelo que disse a ministra da Saúde, Nísia Trindade, é possível que o Brasil exija o Revalida, como queria Bolsonaro, mesmo dos médicos cubanos, o que alteraria a relação deles com o Estado caribenho, e vinculando-o legalmente ao Brasil.
A pergunta é: Cuba concordará?