- Author,Faran Krentcil
- Role,BBC Style
Cinco minutos após o início do novo filme da Amazon Prime, Victoria’s Secret: The Tour ’23, a supermodelo Gigi Hadid, de 28 anos, ri docemente para a câmera. Ela então fala um palavrão.
A atitude representa uma mudança surpreendente da marca, que transformou a lingerie de um produto de luxo francês em um bem básico americano quando se tornou uma loja popular em shopping centers na década de 1980.
Com suas sacolas cor-de-rosa brilhantes e itens forrados de veludo, a Victoria’s Secret era uma referência em sutiãs e roupas íntimas que atraiu milhões de mulheres americanas ao tornar a lingerie sexy tão acessível quanto um par de jeans.
À medida que a Victoria’s Secret se tornou um rito de passagem para as consumidoras adolescentes que compravam os seus primeiros sutiãs “adultos”, suas modelos – entre elas Tyra Banks, Heidi Klum e Gisele Bündchen – também se tornaram nomes conhecidos.
Em 1998, a marca capitalizou seu apelo com o Victoria’s Secret Fashion Show, um desfile de passarela televisionado que transformou meras modelos em “anjos” com sutiãs push-up, salto agulha e enormes asas feitas de penas.
No auge, em meados dos anos 2000, o show realizado anualmente se tornou tão popular que ganhou sua própria Calçada da Fama de Hollywood.
Mas já se passaram cinco anos desde o último desfile da Victoria’s Secret e as coisas mudaram.
E assim o palácio dos sonhos cor-de-rosa mudou e foi remodelado como um veículo para o amor próprio inclusivo e invencível.
Você ainda pode comprar os sutiãs – na verdade, a Victoria’s Secret está contando com isso.
Recém estreado no Amazon Prime, Victoria’s Secret: The Tour ’23 é parte documentário, parte videoclipe – além de um comercial para os tops, espartilhos e roupas íntimas da marca.
O filme é estrelado por Hadid junto com novas modelos da Victoria’s Secret como Adut Akech e Winnie Harlow, além de um coletivo feminino de artistas apelidado de “VS 20”.
O filme abraça “o melhor do nosso passado… e também um momento muito ‘agora’ de nossa cultura”, diz Raùl Martinez, vice-presidente executivo e diretor criativo da Victoria’s Secret, à BBC Culture.
“É claro que ainda temos as asas – mas como podemos apresentá-las em um espaço contemporâneo? É disso que se trata ‘Victoria’s Secret: The Tour’.”
Ao relembrar sua vida passada, a Victoria’s Secret pretende manter a sua força como fenômeno cultural. Dessa forma, traça fortes paralelos com o filme Barbie, o sucesso do cinema que remodelou a imagem antiquada da Mattel, transformando seu glamour outrora plástico em uma força subversiva e brilhante.
“Ouvi algumas comparações”, concorda Martinez.
Durante anos, parte do apelo da Victoria’s Secret foi sua marca Pink, que misturava personagens de desenho animado e sutiãs push-up para adolescentes e estudantes universitárias.
Mas a marca demorou a se adaptar aos tamanhos inclusivos e à fluidez de gênero e, para as mulheres que estão na casa dos 20 anos, a marca ainda pode provocar sentimentos de inadequação.
“A Victoria’s Secret está incorporada em meu cérebro há algum tempo como uma aspiração”, explica Jasmine Wallis, 27, estrategista de conteúdo e podcaster que hospeda o podcast Culture Club da Geração Z. “Atingi a maioridade quando o frenesi estava no auge. As asas. As mulheres muito magras. Nunca senti como se eu pertencesse àquele lugar. Nunca senti como se estivesse falando comigo. Então, como isso pode começar agora?”
Em seu podcast, Wallis e sua co-apresentadora Maggie Zhou, 24, falaram sobre a Victoria’s Secret e sua safra atual de modelos – Gigi e Bella Hadid, Emily Ratajkowski – com a cautela cansada de mulheres jovens que sempre ouvem que sua voz é importante, mas muitas vezes são barradas por uma cultura pop que, por detrás da fachada, reflete o contrário.
Como diz Zhou, ver modelos maiores como Tess McMillan e Paloma Elsesser usando as icônicas asas da Victoria’s Secret é bom, mas não inteiramente novo.
“Na minha opinião, as marcas – e isso é verdade para váras marcas – não podem tratar pessoas de cor e pessoas de tamanhos diferentes como um exercício de branding e esperar ser recompensadas por isso.”
Martinez ingressou na Victoria’s Secret vindo da Vogue em 2020, quando a marca estava sofrendo com denúncias do movimento #MeToo e ligações implícitas com Jeffrey Epstein, magnata americano acusado de abuso sexual de menores em 2019.
As ex-modelos de passarela Bridget Malcolm e Dorothea Barth Jorgensen abriram o jogo sobre os rigorosos padrões de marca da marca e o então presidente Ed Razek insultou mulheres trans em uma entrevista à Vogue. E um documentário de 2022 de Matt Tyrnauer chamado Victoria’s Secret: Anjos e Demônios conectou todos os pontos, deixando a marca pronta para o cancelamento online.
Na verdade, as vendas caíram desde uma alta em 2016, quando a marca obteve mais de U$ 7,7 bilhões R$ 40 bilhões em termos atuais) em receitas. Marcas como Aerie, Skims e Parade, juntamente com etiquetas produzidas pelos supermercados Target e Walmart, desafiaram a quota de mercado da loja.
No seu pior ano, em 2020, a marca mal arrecadou U$ 5 bilhões – uma queda especialmente chocante, tendo em conta que grande parte dos seus produtos eram do mesmo tipo de roupa esportiva e confortável que a maioria das mulheres usou durante a pandemia.
Mas mesmo com a erosão da cultura dos shoppings, os lucros da Victoria’s Secret caíram apenas 6%, para U$ 6,34 bilhões em 2022. Em março deste ano, eles projetaram um aumento anual nas vendas líquidas na “faixa média de um dígito”. Não é enorme para os seus padrões – mas é um ganho de dezenas de milhões.
“O que as pessoas realmente não percebem é que a cadeia de fornecimento de roupas íntimas – de sutiãs, em particular – é realmente dominada por eles”, afirmou à BBC Culture Lauren Sherman, analista de moda da Puck que está co-escrevendo um livro sobre o assunto. “Eles geram mais vendas; vendem mais sutiãs do que praticamente qualquer outro varejista de marca única.”
“Eles têm a presença no varejo e a marca para se manterem à tona, mesmo em tempos difíceis”, acrescenta Elka Gruenberg, especialista em lingerie que trabalhou com diversas marcas do ramo. “Agora eles precisam se conectar com todos os compradores de todo o espectro.”
“E claro”, acrescenta ela, “a Geração Z é importante”.
Uma adaptação lenta
Para a Victoria’s Secret, essa mudança começou no ano passado em um armazém em Ohio, onde a engenheira de espartilhos Michaela Stark, de 28 anos, ganhou carta-branca para criar os desfiles de moda da marca.
A autoproclamada “vadia que transforma o corpo” estava lá “para desmantelar toda essa ideia sobre as angels da Victoria’s Secret”, recriando suas roupas mais icônicas com formas mais redondas e imagens criativas mais rebeldes – até mesmo totalmente estranhas. Além do mais, a megamarca estava pagando para ela fazer isso.
Stark faz parte do novo coletivo “VS 20” de artistas, ativistas e designers escolhidos para renovar a marca – e documentar o processo para o próximo filme do Prime Video.
“A coisa toda foi muito selvagem”, diz Margot Bowman, a diretora emergente contratada para capturar seus colegas de Londres – incluindo Stark, além da artista Phoebe Collings-James e da designer Supriya Lele – com o objetivo de destruir antigos estereótipos sobre a Victoria’s Secret e construir novos.
Houve outro sinal dos novos ventos na última semana, quando a Victoria’s Secret, pela primeira vez, lançou uma coleção de sutiãs e calcinhas projetadas especificamente para atender às necessidades de mulheres com deficiência.
A varejista anunciou o lançamento da linha VS & PINK Adaptive e disse que a mercadoria já está disponível para clientes online e em lojas selecionadas em todo o país.
A marca expôs os produtos num desfile com pessoas com deficiência.
O poder da marca
Assim como Wallis, Bowman atingiu a maioridade no auge da abordagem da Victoria’s Secret sobre a perfeição feminina. “Tenho uma imagem de Gisele usando aquelas asas grudada em meu cérebro”, disse ela à BBC Culture.
Ela muitas vezes se sentia excluída do mundo que a marca lutou tanto para criar e, diz, foi exatamente por isso que quis fazer parceria com o fenômeno das lingeries: “O fato de eu me lembrar das Victoria’s Secret Angels de 20 anos atrás, quando eu nem estava assistindo ao programa, diz muito sobre o poder da plataforma da marca”, diz ela. “Então eu estava realmente animada por estar na posição de criar um novo conjunto de imagens – um novo registro histórico que seria mais inclusivo… Foi realmente bastante catártico para mim, encontrar uma sensação de paz em meu corpo através do processo… e devo dizer que durante todo o processo a aspiração de ser magra literalmente não existia.”
O mesmo sentimento era verdadeiro até mesmo para Adriana Lima, brasileira que foi uma das angles originais da Victoria’s Secret e se tornou basicamente a mulher-propaganda da perfeição bronzeada e magra da marca.
Quando, aos 42 anos, ela recebeu uma ligação da marca para voltar a fazer parte do time de modelos, fazia menos de três semanas que ela havia dado à luz seu terceiro filho.
“Achei que isso nunca iria acontecer!”, diz Lima de sua casa em Los Angeles. “Fizemos a sessão de fotos alguns meses depois de eu ter meu filho. Dá para ver claramente nas fotos que eu ainda estava com o peso da gravidez… Quer dizer, deixa eu te contar, ganhei muito peso! .. O que é totalmente bom! Mas não é comum [em uma campanha de lingerie], sabe? Eu não achava que naquela fase seria possível eu ser modelo [de lingerie]. Mas eles me abraçaram de qualquer maneira.”
Lima diz que suas filhas adolescentes queriam ser angels da Victoria’s Secret “desde os seis anos” e, depois de pensar sobre o assunto, ela concordou em permitir depois que elas terminarem a escola. “Apoiarei totalmente [porque] vejo o trabalho que a marca está fazendo.”
Caso as filhas de Lima se juntem ao grupo VS, estarão em boa companhia. Cinco anos depois de seu ex-CEO ter declarado que apenas mulheres cis e magras eram dignas de asas, a Victoria’s Secret deu as boas-vindas às modelos trans Valentina Sampaio e Colin Jones, à ativista indígena Quannah Chasinghorse, à sereia plus size Candice Huffine, à diretora Jade O’Belle, e à comediante e autora Ziwe. As mulheres aparecem ao lado de herdeiras de Hollywood como Hailey Baldwin Bieber e Amelia Gray Hamlin, além de Lila Moss, filha de Kate.
“É definitivamente um passo na direção investir em comunidades lideradas por mulheres e em projetos criativos dirigidos por mulheres”, diz Zhou. “Agora, eles precisam fazer o mesmo com sua cadeia de fornecimento. Nos informar sobre seus trabalhadores do setor de vestuário. Como estão valorizando eles?”
Em 2022, a Victoria’s Secret pagou US$ 8,3 milhões em verbas rescisórias a trabalhadores de fábricas tailandesas. De acordo com a organizção Worker Rights Consortium, “é o máximo que qualquer marca já contribuiu para ajudar a resolver um caso de roubo de salário”.
Para compradores da Geração Z como Zhou? “Sou extremamente cínica… mas é um começo.”
Novo sonho americano?
Do lado de fora da loja principal da Victoria’s Secret, na Quinta Avenida, em Nova York, compradores como Taylor, de 16 anos, e sua mãe, Nicole, estão aproveitando os últimos momentos de suas férias para explorar a marca.
Taylor, natural de New Hampshire, está especialmente animada “porque esta loja é onde todas as supermodelos compram”.
Onde ela ouviu isso? “TikTok, eu acho. E no Instagram de Hailey [Bieber].”
A marca tinha acabado de dar mais um tropeço – uma festa durante a Semana de Moda de Nova York que, segundo o site The Cut, “poderia ter sido um e-mail”, pois não teve um desfile.
Logo depois, uma série de postagens (rapidamente excluídas) nas redes sociais da cantora Doja Cat, em que ela criticava um vestido e uma calcinha fio dental da VS, atingiram a marca.
Mas para compradores como Lizzy, de 39 anos, nada disso realmente importou. Ela ainda compra sutiãs na Victoria’s Secret por causa de seu caimento confiável.
“Eu sei que eles vão segurar”, diz ela. “Leva uma eternidade para encontrar uma nova marca que combine com você. Por que eu mudaria se tenho dois filhos, um emprego e sei o que funciona?”
A especialista em lingerie Gruenberg concorda. “O sutiã é a peça de roupa mais técnica que você já usou”, diz ela. “É claro que o marketing ajuda. Mas, além do marketing, a lingerie tem um preço emocional. As pessoas compram por causa de como se sentem em relação ao seu corpo. E quando algo funciona, funciona.”
Talvez seja por isso que o filme Victoria’s Secret: The Tour ’23 começa com um rosto já conhecido, da namoradinha americana Gigi Hadid – sem dúvida, o equivalente no mundo da moda à Margot Robbie, ou mesmo da própria Barbie.
Nos primeiros minutos do filme, Hadid ostenta uma malha rosa e um sorriso tranquilizador e deslumbrante – o mesmo que ela exibiu em sua primeira passarela da Victoria’s Secret em 2015.
Mas logo Hadid se afasta, abrindo caminho para a artista multidisciplinar nigeriana Eloghosa Osunde. Então Guinevere Van Seenus, de 47 anos, entra em cena vestindo apenas roupas íntimas e um olhar de aço.
A cantora de rock Karen O grita “cortem as cabeças!”, enquanto a supermodelo Candice Swanepoel desfilar por uma passarela rochosa.
Naomi Campbell então aparece embaixo de chuva enquanto o hino rap de Bree Runway, That Girl, toca. E a Victoria’s Secret oferece mais uma vez às mulheres sua versão do lindo sonho americano – desta vez, tanto nas telas quanto nas lojas.
“Nunca, em um milhão de anos, pensei que faríamos isso”, diz Martinez em seu escritório na sede da Victoria’s Secret em Nova York. “Acho que vai criar uma narrativa diferente para a marca que é muito importante… e foi um alívio nos reposicionarmos e chegarmos onde queremos.”
Sherman acrescenta: “O desafio deles agora é transformar a participação em participação de mercado… [Victoria’s Secret: The Tour ’23] é a chance de provar a todos que deveriam prestar atenção, especialmente em uma marca que está meio ‘de fora’. … É o que eles têm que fazer: expor tudo para nós e assumir grandes riscos. E então veremos se funciona.”
Victoria’s Secret: The Tour ’23 está disponível no Brasil na plataforma de streaming Prime Video.