Até esta segunda-feira (27), em 2023, 32 mulheres foram assassinadas por homens no Distrito Federal. É o maior número de feminicídios na capital desde 2015 (veja no gráfico abaixo).
Dois dias após o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, datado no sábado (25), as questões que ficam são o que vem sendo feito – ou não – para mudar essa realidade? E como o machismo interfere na violência de gênero?
Para a professora de direito da Universidade de Brasília (UnB) Janaína Penalva, a educação é uma das formas de resgate de autonomia das mulheres e de transformação de homens. Para promover o debate sobre o assunto nas escolas, pesquisadoras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da UnB elaboraram o jogo de cartas “Emancipação: Jogando contra o machismo” (saiba mais abaixo).
De acordo com Penalva, o Estado é falho quando o assunto é proteção da mulher. “É um completo fracasso do Estado”. diz a professoras.
“A partir do momento em que uma mulher é morta, significa que todo mundo errou. O Estado, a sociedade que não socorreu aquela mulher, nós na educação dos nossos filhos”, complementa Cristina Tubino, presidente da Comissão de Combate à Violência Contra a Mulher na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/DF).
A professora Janaína Penalva explica que para mudar esta realidade de violência contra a mulher é preciso olhar para muitas camadas, mas a primeira transformação é no valor que a sociedade dá para as mulheres. “Esse valor é baixo, por isso são mortas com extrema facilidade e sem muito espanto”, diz.
Penalva destaca que há o estereótipo de que o valor da mulher é encontrado no fato de ser mãe ou ser esposa e que o espaço conjugal ocupa o centro do debate, ou seja, o centro da vida da mulher é considerado, através do machismo, como casar, manter o relacionamento e ter filhos. A professora elenca fatores que podem mudar essa percepção:
- Garantir autonomia da mulher: desde a infância com acesso à educação, não ser forçada a se casar e autonomia contraceptiva
- Alterar estereótipos de que o papel da mulher se resume a ser mãe e esposa
- Proteger as meninas e mulheres para evitar diferentes tipos de violência
- Apoiar a família
- Promover a escola como um lugar de liberdade de conhecimento
“Mulheres autônomas vão ser capazes de ingressar na política e continuar lá. Assim vão conseguir alterar legislações e criar novas. É um processo de compreensão da mulher como um ser humano, como um sujeito de direito”, afirma a professora.
No entanto, Janaína Penalva destaca que o homem tem papel fundamental para o fim da violência de gênero. O combate ao machismo e à misoginia desde a infância podem influenciar em diferentes estruturas da sociedade e quebrar o ciclo de violência e desprezo em relação às mulheres.
Machismo em movimento
Violência contra a mulher, empoderamento, violência doméstica; sobrevivência feminina — Foto: Bruna Bonfim/g1
O machismo opera na questão do esvaziamento da voz da mulher, como explica a professora Janaína Penalva.
“O machismo está presente na invalidação da palavra da mulher. O que o machismo diz é que as mulheres não são confiáveis, mentem, manipulam, exageram. No momento em que narram, por exemplo, a violência sexual, quando não tem nenhuma testemunha, entre a palavra da mulher e do homem, sempre vai prevalecer a do homem: seja do policial militar ao ministro”, diz.
Os homens colocam as mulheres em uma condição de subordinação e se sentem donos da vida delas. E o machismo estrutural configura, nesta estrutura que é definida por homens e executada por eles, que muitas vezes resulta em violência e feminicídio, como explica a professora.
“Violência contra a mulher é a autonomia sexual, homens matam porque não aceitam o fim dos relacionamentos. A maioria dos casos é a mulher interrompendo e exercendo a sua autonomia sexual em um relacionamento, o que é inadmissível para os homens”, explica a professora.
Machismo e violência de gênero: caminhos para o enfrentamento
“Não é só aplicar a medida protetiva”, afirma Cristina Tubino, presidente da Comissão de Combate à Violência Contra a Mulher na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/DF). A advogada elenca pontos que podem contribuir, em curto prazo, para a proteção da vida das mulheres:
- Suporte para que a mulher possa sair do relacionamento abusivo
- Apoio para ela desenvolver uma atividade laborativa
- Apoio financeiro inicialmente quando necessário
- Medidas protetivas eficientes
- Atendimento às mulheres vítimas de violência de forma acolhedora
“Não adianta essa mulher chegar em uma delegacia de polícia e não ser tratada adequadamente. Se ela for destratada ou a reclamação dela de violência for menosprezada, ela não vai voltar à delegacia. E ela vai sofrer violência e continuar sofrendo até que ela seja vítima de um feminicídio”, afirma Tubino.
Uma das críticas das pesquisadoras é sobre o não monitoramento das medidas protetivas e do risco que as mulheres correm. “O que não podemos é ficar sempre aplicando as medidas protetivas como se fosse uma receita de bolo”, diz Cristina Tubino.
A professora Janaína Penalva complementa que há o formulário nacional de avaliação de risco de violência doméstica e familiar contra a mulher que não é usado no seu inteiro potencial para qualificar as medidas protetivas e evitar casos de riscos extremos.
“Não é utilizado como deveria, mesmo as mulheres que possuem medidas protetivas que deveriam ter o risco diminuído de morrer, elas não têm um monitoramento individualizado nesses casos de extremo risco. […] Foi criado exatamente para isso, para diferenciar e tornar claro os casos extremos em que a ameaça é iminente e a proteção possa ser iminente”, diz.
O g1 entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública do DF para entender como é feita a utilização do formulário, mas até o fechamento da reportagem, não houve resposta.
Jogando contra o machismo
Jogo “Emancipação: Jogando contra o Machismo”. — Foto: Reprodução/Redes sociais
Para a professora Janaína Penalva, é essencial que os homens tenham espaços para se desenvolverem como pessoas que respeitam as outras e que não sejam ensinados que têm mais poder. “A relação entre homens e mulheres é horizontal, ambos têm poder, os meninos precisam entender o lugar deles no mundo”, diz.
Dentro da sala de aula é um dos locais onde o ciclo do machismo pode ser quebrado, como destaca a professora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília Valeska Zanello. “Educação tem uma função que pode ser preventiva, ou seja, ela pode proporcionar uma transformação, uma quebra dessa cadeia repetitiva intergeracional do machismo”, diz.
Além da inclusão da valorização de mulheres e combate ao machismo de forma transversal em diferentes disciplinas, como química, literatura, matemática, entre outras, a professora incentiva a adoção de uma forma lúdica e desenvolveu um jogo para tratar sobre o tema dentro da sala de aula com jovens a partir dos 15 anos.
Pesquisadora explica jogo de cartas “Emancipação: Jogando contra o machismo”
Em união ao grupo de pesquisa na Universidade Federal de Santa Catarina (Ufsc) liderado pela professora Lígia Feitosa, Valeska Zanello e o grupo de pesquisa da UnB elaboraram, durante dois anos e meio, o jogo de cartas “Emancipação: Jogando contra o machismo”. Com um total de 68 cartas, o passatempo tem como objetivo promover o letramento de gênero e visibilizar as violências – muitas vezes naturalizadas – contra a mulher (veja no vídeo acima como funciona o jogo).
Cartas do jogo “Emancipação: Jogando contra o racismo” são divididas em quatro eixos centrais. — Foto: Reprodução/Redes sociais
As cartas são divididas em quatro eixos:
- Raízes culturais do machismo
- Mulheres e dispositivo amoroso e materno
- Masculinidades: homens e dispositivo da eficácia
- Violência contra meninas e mulheres
A professora ressalta que o baralho pode ser usado por educadores com grupos de até 15 estudantes nas escolas brasileiras. No DF, de acordo com o levantamento feito pela Secretaria de Educação do Distrito Federal, no início de 2023, 164 unidades escolares atuam em projetos com a temática de combate ao machismo e misoginia.
“A educação é essencial. É a chance que o Estado brasileiro tem de intervir socialmente em algo que é estruturado historicamente que é o machismo e que tem efeitos nefastos”, destaca a professora Valeska Zanello.